sábado, novembro 27, 2010

Lei

A Lei 11.106/2005, que determina, dentre outras medidas, a alteração do art. 231 (relativo ao tráfico internacional de pessoas) do Código Penal e a inserção do art. 231-A (dispõe sobre o tráfico interno), mantendo basicamente os mesmos retrocessos e conservadorismos da redação original, condenando o favorecimento da prostituição, apenas substituindo o vocábulo “mulher” por “pessoa”, e acrescendo a pena pecuniária à de reclusão.

Travestis e o Sonho Europeu

De Michelle Barbosa Agnoleti (UFPB) e José Baptista de Mello Neto (UFPB/UEPB) publicado na Fazendo Gênero 8 - Corpo, Violência e Poder em Florianópolis, de 25 a 28 de agosto de 2008.
“Ser travesti” é uma contínua construção subjetiva e social de gênero. Na arguta percepção de PELÚCIO (2007, p. 274), “Ser travesti não é uma aventura, algo efêmero, uma fantasia que se tira ao chegar em casa, mas uma transformação que passa por um profundo processo.” Os códigos da sociabilidade e da sexualidade das mulheres vão sendo por elas apropriados, ressignificados,  expressando-se nos seus desejos, no modo de vestir, de andar, de falar, no gestual, nas transformações a que submetem seus corpos na busca de um modelo de feminilidade (DENIZART, 1997).
Esse ideal feminino próprio passa necessariamente pela construção de seus corpos e vidas
[...] na direção de um feminino, ou de algo que elas chamam de feminino. Em sua
linguagem êmica, elas querem ser mulher ou se sentir mulher. Se sentir mulher é
uma expressão que por si só já traz algumas pistas de como este feminino é
concebido, construído e vivenciado pelas travestis. De fato, a maior parte não se
iguala às mulheres, nem tampouco o deseja fazê-lo. O feminino travesti não é o
feminino das mulheres. É um feminino que não abdica de características
masculinas, porque se constitui em um constante fluir entre estes pólos, quase
como se cada contexto ou situação propiciasse uma mistura específica destes
ingredientes do gênero. (BENEDETTI, 2005, p.84-85)
Nascer condicionado a ser homem e tornar-se mulher transgride e desessencializa a
dicotomia feminino-masculino socialmente imposta. Na medida em que as possibilidades da
diversidade sexual se ampliam, esse binarismo de gênero é descrito como artificial por BUTLER (2003, p. 24):
Se o gênero são os significados culturais assumidos pelo corpo sexuado, não se pode dizer que ele decorra, de um sexo desta ou daquela maneira. Levada a seu limite lógico, a distinção sexo/gênero sugere uma descontinuidade radical entre corpos sexuados e gêneros culturalmente construídos Supondo por um momento a estabilidade do sexo binário, não decorre daí que a construção de “homens” aplique-se exclusivamente a corpos masculinos, ou que o termo “mulheres” interprete somente corpos femininos. Além disso, mesmo que os sexos pareçam não problematicamente binários em sua morfologia e constituição (ao que será questionado), não há razão para supor que os gêneros também devam permanecer
em número de dois.
Muitas travestis passam por experiências de abusos ainda na infância, e aprendem desde cedo a desenvolverem resistências e defesas a essas agressões. Ao assumirem uma identidade sexual e social fora dos padrões convencionais, são comumente reprimidas, e muitas delas são expulsas de casa ou optam por sair, em busca de liberdade.

Referência
BENEDETTI, Marcos Renato. Toda Feita: o Corpo e o Gênero das Travestis. Rio de Janeiro:
Garamond, 2005.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero – feminismo e subversão da identidade. Trad. Renato
Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

DENIZART, Hugo. Engenharia Erótica – Travestis no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1997.

PELÚCIO, Larissa Maués. Nos Nervos, na Carne, na Pele: uma etnografia sobre prostituição
travesti e o modelo preventivo de AIDS. Tese de Doutorado em Ciências Sociais. São Carlos:
UFSCar, 2007. No prelo.

Na noite nem todos os gatos são pardos Notas sobre a prostituição travesti Larissa Pelúcio

Nos territórios da prostituição elas namoram, encontram e fazem amigas, compram roupas, aprendem técnicas corporais importantes, além, é claro, de ganhar seu “aqué”.
Na análise sensível de Benedetti (BENEDETTI, M. A batalha do corpo: breves reflexões sobre travestis e
prostituição. www.ciudadaniasexual.org/boletin/b11/ consulta em 02/05/2005)
É na convivência nos territórios de prostituição que as
travestis incorporam os valores e formas do feminino,
tomam conhecimento dos truques e técnicas do cotidiano
da prostituição, conformam gostos e preferências
(especialmente os sexuais) e muitas vezes ganham ou
adotam um nome feminino. Este é um dos importantes
espaços onde as travestis constroem-se corporal, subjetiva e
socialmente.
Na pele, na carne, na alma
“Ser travestis” é um processo, nunca se encerra. Construir um corpo e cuidá-lo é uma das maiores preocupações das travestis. Elas estão sempre buscando a “perfeição”, o que significa “passar por mulher”, uma mulher bonita e desejável, geralmente “branca” e burguesa. Em busca dessa imagem afinam
seus traços, bronzeiam seus corpos, adornam-se com roupas de remetem a mulheres glamourosas, escolhem nomes de atrizes emusas hollywoodianas ou cantoras pops, submetendo-se às normas estabelecidas.

Se “ser travesti” é algo continuado e sem fim, este processo pode ser dividido em algumas etapas. A primeira delas é quando ainda se é “gayzinho” (classificação êmica), ou seja, já assumiu a orientação sexual para familiares e para “a sociedade” (como elas dizem, para um conjunto mais abrangente de pessoas), mas ainda
não se vestem com roupas femininas ou ingerem hormônios.
A fase seguinte é “montar-se”, que significa, no vocabulário próprio do universo homossexual masculino, vestir-se com roupas femininas, maquiar-se de forma a esconder a marca da barba, ressaltar maçãs do rosto, evidenciar cílios, as pálpebras dos olhos e a boca. Nessa etapa, vestir-se com roupas femininas ainda é
algo ocasional, furtivo, restrito a momentos de lazer.

O terceiro momento é o da “transformação”, uma fase mais nuançada, pois tanto pode envolver apenas depilação dos pêlos do corpo e vestirse cada vez mais freqüentemente como mulher, como pode
indicar o momento inicial de ingestão de hormônios, quando estes ainda não mostraram efeitos perceptíveis; finalmente, a quarta etapa, quando já se é travesti, além do consumo de hormônios, vestem-se todo o tempo com roupas femininas (sobretudo roupas íntimas, pode estar de shorts, sem camisa, mas de calcinha) e
planeja injetar silicone nos quadris e nádegas.
A transformação seria esse processo de feminilização que se inicia com extração de pêlos da barba, pernas e braços, afina a sobrancelha, deixa o cabelo crescer e passa a usar maquiagem e roupas consideradas femininas nas atividades fora do mundo da casa. A seguir, começam a ingestão de hormônios femininos
(pílulas e injeções anticoncepcionais e/ou de reposição hormonal), passando por aplicações de silicone líquido nos quadris e, posteriormente, nos seios, até chegar (e nem todas podem fazê-lo por absoluta falta de dinheiro) a intervenções cirúrgicas mais radicais – plástica do nariz, eliminação do pomo-de-adão, redução
da testa, preenchimento das maçãs do rosto e colocação de prótese de silicone.